Lançamento do 7º livro «Vidas Cruzadas» Dr. Alvaro Carvalho

Ecos da Capital, por Dr. José Marques Vidal

  “Estamos todos aqui por uma questão de amizade” - disse o Dr. Álvaro Beleza no enaltecimento das qualidades humanas, profissionais, sociais e culturais do Dr. Álvaro de Carvalho, na apresentação do seu último livro, “Vidas Cruzadas”, no Auditório do Centro Paroquial do Estoril, perante uma vasta assistência constituída por gente de todos os estratos sociais.

Com efeito, a amizade sobrepunha-se a todo outro sentimento presente, respirava-se em auditório cheio e interessado.

 Mas pergunta quem bem o conhece: O Dr. Álvaro Carvalho poderá ter pessoas que não sejam suas amigas, quaisquer que tenham sido as circunstâncias em que com ele lidaram?

Como estudante, funcionário público, médico, no internato, na prática clínica, na direcção de serviços médicos, na administração e gestão de Hospitais, pautou a sua conduta por critérios de irrepreensível integridade de carácter e sentimentos de fraterno humanismo. O tempo que tanto falta a muitos, sempre apressados para tudo, sobrava para Álvaro Carvalho ouvir e cuidar dos seus doentes, gerir e administrar instituições públicas e estar disponível para os muitos amigos que o requisitavam. Cessada a actividade médica oficial, cresceu-lhe o tempo para a actividade humanitária e a autoria literária. E aí o temos a criar a Fundação a congregar médicos e presidentes das câmaras beirãs no combate à cegueira provocada por cataratas, com operações a custo zero, e a desunhar-se em verdadeiros êxitos literários que sucessivamente foi publicando.

Como o conheci? Já lá vão perto de 40 anos. Caçava-se em Andaluzia em Outono de sol rútilo e quente, estava Álvaro na sua pujança profissional. Dados meia dúzia de tiros, vejo-o espipar-se e dirigir-se ao monte, onde o velho Florindo, de Assafora, se afadigava a preparar o almoço para cerca de trinta bicos, panelas ao lume e lâmina de naifa na mão para descasque das batatas. Depois de despir a bata de médico, para envergar o camuflado de caçador, envergara então o avental de cozinheiro e, em amena conversa, ajudava o Florindo na arte de bem cozinhar. Nesse mesmo momento descobri Álvaro de Carvalho: um Homem simples e fraterno. E a simplicidade anda de mãos dadas com a grandeza de alma.

José Marques Vidal, 2023/10/22

HUMILHAÇÃO EM DIRECTO

Os “comentadeiros” políticos e do futebol, cada qual na estrita defesa do seu clube, esgotaram a minha paciência para assistir a programas televisivos. Contudo, em momentos de tédio, sou tentado a ter uma ideia geral da actualidade noticiosa. Num desses instantes, deparei-me com uma dita Comissão de Inquérito da Assembleia da República ao “Caso das gémeas”, interrogando uma mãe indefesa, em termos inconcebíveis. A minha primeira reacção foi desligar o televisor, mas fui masoquista e acabei por assistir àquele espectáculo indecoroso, para ver até onde chegava o despudor e a falta de humanidade e de compaixão daqueles deputados.

Qual era o crime cometido pela senhora para ser tratada daquela forma ignóbil: ter tentado remover obstáculos para poder aceder ao tratamento de duas filhas gémeas que nasceram com uma grave deficiência genética. Na mente dos indomáveis interrogadores o libelo acusador era agravado por a senhora viver no Brasil, embora fosse neta e filha de portugueses e ter dupla nacionalidade. Entretanto, as crianças também tinham adquirido a nacionalidade portuguesa, antes de terem o diagnóstico da doença.

Acrescia a tudo isto o facto de haver suspeitas de ter recorrido a “cunhas”, ao mais alto nível, para ter acesso num hospital público a um medicamento inovador, dispendioso, mas susceptível de melhorar a situação clínica das filhas.

Pelo que foi dado perceber ninguém foi ultrapassado, porque não havia qualquer outra criança a aguardar essa terapêutica.

A “cunha” em Portugal é quase uma instituição, mas isto acontece porque os serviços públicos não respondem com a rapidez necessária para resolver muitos problemas, mesmo quando têm manifesta gravidade. E se está em jogo a saúde de pessoas, sobretudo com patologias graves, é lícito que se lance mão dos meios técnicos disponíveis para tratar os nossos doentes. E quando se trata de crianças como estas, para quem a genética foi tão cruel, só temos de louvar a luta e a persistência desta mãe para conseguir obter medicamentos inovadores capazes de melhorar a saúde das filhas.

Se os interrogatórios foram genericamente chocantes, a interpelação de um deputado ultrapassou todos os limites: perguntou à senhora como estavam as filhas! Talvez pretendesse obter a resposta de que tinham piorado, para poder inferir que não tinha valido a pena o seu esforço, muito menos o volume da despesa. Como seria de esperar, da face abatida da interrogada escorreram lágrimas e não palavras!

Já agora interrogo-me: estes deputados da Nação nunca meteram “cunhas” quando a doença lhes bate à sua porta ou à de familiares e amigos? Se a resposta é negativa, terei de lhes dizer que são a excepção e não a regra, porque durante a minha longa carreira profissional, e ainda hoje, inúmeros políticos, deputados e governantes me solicitam ajuda em contextos de situações clínicas mais ou menos graves. Nunca deixei de os atender, tal como faço com qualquer cidadão anónimo que implore os meus préstimos, sem deixar de respeitar os princípios éticos e deontológicos inerentes à profissão.

A partir de agora fico a saber que por esta minha faceta profissional corro o risco de vir a ser incomodados por estes “vigilantes” a quem o povo, infelizmente, conferiu o seu voto. Mas não me amedronta a possibilidade de um dia ser constituído arguido por essa minha atitude solidária. Cá estarei para me defender!

A última palavra é para a jornalista que descobriu este furo mediático que abriu telejornais e se arrastará durante meses na comunicação social. Tudo parece indicar que o freelancer contratado que teve acesso à casa da senhora o fez de forma sub-reptícia, insinuando que estava ali para ajudar duas crianças fragilizadas, quando afinal o que estava em jogo era obter uma caixa jornalística de muito mau gosto.

 

Álvaro Carvalho

Médico especialista em Medicina Interna. Ex-gestor do HGO

26-06-2024      Jornal Sol Online

A COMPLEXA GESTÃO DE UM HOSPITAL

Por Dr. Álvaro Carvalho

No final do século passado o progresso científico e técnico determinou uma modificação radical do exercício clínico. Como a Medicina não podia ficar enquistada nas suas fronteiras, teve de acompanhar as profundas transformações sociais que ocorreram a ritmo acelerado na sociedade, sobretudo nalgumas disciplinas que com ela se relacionam. Nas Unidades de Saúde, sobretudo naquelas onde se faz medicina de ponta, cruzam-se problemáticas que podem influenciar, de uma ou outra forma, o trabalho do médico. A sua actuação também não pode deixar de ser condicionada por conceitos éticos e regras jurídico-legais, sem esquecer que o seu trabalho tem um escrutínio apertado dos media, em alerta permanente, à procura de eventuais erros ou meros desvios ao que eles julgam o comportamento correcto.

No passado, o clínico tomava as decisões que lhe pareciam mais indicadas para cada situação e nem sempre partilhava as opções e os riscos com os doentes. Quando muito exteriorizava as suas preocupações com os familiares. No caso de uma doença grave, este paternalismo algo tinha a ver com a sua protecção, pois tentava ocultar-se-lhe o prognóstico desfavorável da sua doença. Hoje, isso não é possível! As pessoas estão mais esclarecidas, a Internet está à mão de semear e é comummente aceite que o doente tem direito à informação e à partilha de decisão. Para esta mudança na relação médico/doente também terá contribuído o facto de se poder ter uma postura mais optimista, quando há soluções terapêuticas eficazes (médicas e cirúrgicas) para doenças com prognóstico reservado. A utilização de técnicas invasivas, actos cirúrgicos arrojados e terapêuticas agressivas obrigaram à partilha de riscos com os doentes, que passaram a comprometer-se com as decisões clínicas, através do consentimento informado. Este pacto tornou-se vital para defender o profissional das malhas legais. Não sei se o valor destes documentos é absoluto para uma defesa em tribunal, mas acho improvável que os magistrados sejam indiferentes a este compromisso selado entre as partes envolvidas, tendo em vista a investigação ou o tratamento de uma doença. Assim, esta declaração de permissão funciona como a rede para um trapezista e só por um lapso grosseiro alguém parte para exercícios técnicos deste quilate sem ter a sua cobertura, porque a litigância nesta área é cada vez maior. Nos EUA os advogados passaram a percorrer os corredores dos hospitais à procura de matéria criminal contra profissionais e instituições (Está previsto na lei a cobrança de percentagens das indemnizações que recebem). A busca da prática negligente ou do erro médico fez escola e chegou a outras latitudes, mesmo onde não existem normas jurídicas tão facilitadoras do negócio. Noutra perspectiva, a comunicação social alimenta esta controvérsia para cativar audiências. Junta-se a fome com a vontade de comer! A «vigilância» jurídica da actividade clínica trouxe um efeito perverso: a medicina defensiva. Esta atitude começou a desenhar-se quando se degradou a cadeia hierárquica e as necessárias discussões clínicas, destinadas a estabelecer diagnósticos e decisões terapêuticas de acordo com a leges artis. Perante dúvidas legitimas, um decisor único toma as suas precauções e pede exames auxiliares para não deixar margem para a culpabilização. Esta conduta é sobretudo notória nos serviços de urgência onde os recursos humanos são escassos, não há cadeia de comando, nem tempo para conferências clínicas. O caos assistencial em que laboram estes profissionais também convida a que se empurre para quem vier a seguir os casos mais complicados. No âmbito da actividade clínica do hospital são diversas as questões éticas que se colocam às instituições e ao seu corpo clínico: início ou suspensão de tratamentos, obsessão terapêutica, distanásia, relação do médico com o doente, manutenção do sigilo profissional, conflito de interesses e ensaios clínicos. As Unidades tiveram de se organizar para enfrentar esta complexa panorâmica assistencial. Uma das ferramentas de que se lançou mão foi a Comissão de Ética, com uma constituição pluridisciplinar, integrada por médicos de áreas críticas (entre outras, neurociências, cuidados intensivos, materno-infantil, infecciologia e psiquiatria), com o indispensável apoio jurídico. As Comissões de Farmácia e de Terapêutica terão sido as primeiras a aparecer, justificadas pela introdução de novos fármacos para tratar doenças graves, em que tem de ser pesada a relação custo/benefício.

Alguns hospitais autonomizaram a área dos Antibióticos, não só pelo seu preço exorbitante (Nas décadas de 1960 e 1970 os antibióticos consumiam metade dos orçamentos para medicamentos), mas também porque a eclosão das resistências bacterianas obrigou à tomada de medidas drásticas para travar este pernicioso fenómeno. Para reforçar a luta contra as infecções nosocomiais surgiram ainda as Comissões de Higiene que criaram normas tendentes a implementar as boas práticas. Nos últimos anos do século passado estas Unidades tiveram de encarar a onda de defesa da qualidade, prática já instituída noutros sectores da actividade económica. O tema entrou no debate político, com juras de amor a causa tão nobre. Com ventos favoráveis, constituíram-se as primeiras Comissões de Qualidade. Os resultados práticos do investimento tardaram a ser visíveis, porque havia uma dificuldade a ultrapassar: a consensualização do que era a qualidade, entendida de forma diferente pelos agentes envolvidos no processo. Para uns, a prioridade devia ser direcionada para questões como o erro em medicina, o controlo dos custos ou a afectação de recursos materiais e humanos. Para outros, tinha de dar-se prioridade a aspectos como a efectividade, a eficiência, a segurança e a rápida prestação de cuidados. Sem consenso, passou-se por uma notória dificuldade para pôr em prática algumas formulações teóricas e o debate arrastou-se; todavia, os órgãos dirigentes acabaram por ser sensibilizados para esta causa - em 1999 foi criado o Instituto da Qualidade em Saúde, destinado a uniformizar conceitos e a traçar uma estratégia global. Posteriormente, vieram os processos de acreditação das Unidades, com o modelo inglês King´s Fund Health Quality Service e o norte-americano Joint Commission International, que estabeleceram normas orientadoras, centradas nos doentes e na gestão dos serviços.

Há outro aspecto sensível nas Instituições que não é tratado com a devida atenção. Refiro-me à comunicação interna e externa. O mau exemplo vem da gestão de topo, porque conversas de gabinete não chegam para identificar e solucionar problemas. É necessário mergulhar no ambiente laboral para se compreenderem certas questões e fomentar o diálogo entre os grupos profissionais. Sem isso, haverá tendência para que se interponham barreiras entre pessoas e serviços. Num passado recente, o director clínico convocava com regularidade uma reunião da Comissão Médica (directores de serviço de acção médica). Este fórum permitia o debate estimulante dos principais problemas dos serviços: anseios, projectos e afectação de recursos. Não havia travões à expressão da opinião! O director clínico saía da sala confortado com os preciosos contributos recebidos. Estas reuniões desapareceram do mapa, paralelamente à perda de autoridade e de influência deste órgão. Falemos do diálogo entre médico e doente. São inúmeros os obstáculos criados nos vectores de uma relação que no passado era quase sagrada. Circula-se à volta de máquinas, esquecendo-se que a medicina existe para tratar doentes. Há actualmente outro ponto crítico no funcionamento das nossas instituições: a interface com a comunicação social, sobretudo com os repórteres das televisões que, de microfone na mão, invadem a nossa privacidade. Entretanto, para os gabinetes de comunicação são escolhidos afilhados políticos que dominam mal a matéria! Quando acossados, fogem do confronto ou prestam esclarecimentos pouco perceptíveis ou mesmo erróneos. Ora, o assunto é demasiado sério para ser tratado superficialmente. Resta saber se as administrações estão interessadas na intervenção do médico, não vá ele pôr a descoberto insuficiências assistenciais. Na minha óptica, os médicos carecem de formação nesta matéria. A OM devia ponderar a prestação de apoio a quem trabalha em áreas críticas, susceptíveis de gerar a «curiosidade» dos media. Esta lacuna tornou-se evidente durante a pandemia, com vários colegas a surgir em palco pouco preparados, do ponto de vista técnico e comunicativo, sem um discurso que os distinguisse de comentadores circunstanciais. Em recorrentes inquéritos de opinião, a nossa profissão é aquela em que a maioria das pessoas mais confia. Esta apreciação favorável resulta de um trabalho diário exigente e abnegado. Ora, este capital de confiança não pode ser alienado, mas sim defendido em todo o lado, com serenidade e elevação, sobretudo quando se está perante interlocutores ignorantes e/ou mal-intencionados.

Álvaro Carvalho

Especialista em Medicina Interna

(10/08/2022)

O COLAPSO DO SNS

Artigo de Álvaro Carvalho * Revista da OM*

As televisões estão inundadas por debates e comentadores para todos os gostos. Alguns também são colunistas de jornais e discorrem, com grande à-vontade, sobre diversos temas – política, saúde, pandemia, guerra e incêndios. Consta que são pagos a peso de ouro!

Há um programa semanal que dura há décadas e embora já nascesse com barbas permanece no cartaz, com mudança de canal e de nome, pelo meio.

Nesta tribuna pontifica um teórico afamado, que namorou várias áreas políticas, sem nunca ultrapassar a barreira do político falhado - passa por ser um estudioso do movimento operário.

Normalmente não acompanho estes programas.  Porém, há dias, tropecei neste e segui-o porque se abordava o tema Saúde e contava com a participação do Bastonário da OM.

O referido intelectual falava sobre a postura nefasta que a OM assumia na discussão e implementação das políticas de saúde. Não poupava outras ordens profissionais, mas aquele era o momento de ajustar contas com os médicos e o seu Organismo. Discorria sobre várias questões como o numerus clausus e a atribuição de idoneidades formativas pelos serviços hospitalares, com a leviandade que a ignorância permite.  O seu discurso remeteu-me para a máxima de Hipócrates: «A ciência cria conhecimento; a opinião ignorância».

Miguel Guimarães assistia à dissertação com um sorriso benevolente, imbuído do espírito de compaixão que os médicos têm perante certas situações. Chamado a expor os seus pontos de vista fê-lo de forma calma, concisa e convincente, explicando que os assuntos em causa tinham a ver com o Ministério da Saúde e não com a OM. Outro dos comentadores residentes corroborou as suas afirmações, enquanto o comparsa se remetia ao silêncio, confrontado com o contraditório que repunha a verdade dos factos.

Estes programas detêm-se na espuma dos dias e quase nunca permitem a discussão aprofundada dos temas em debate. Mesmo sabendo que os detractores dos médicos não lerão o que escrevo, faço um breve resumo do que foi a evolução da Medicina em Portugal nos últimos 60 anos.

No final da década de 1950, a OM liderou um movimento dos seus associados tendente a constituir-se como parceira na discussão da política de saúde. Este debate durou três anos e culminou com a publicação, em 1961, do Relatório das Carreiras Médicas, onde se propunha um conjunto de reformas e perpassava a ideia da criação de um Serviço Nacional de Saúde com duas carreiras: uma Hospitalar e outra de Saúde Pública.

A implementação dos princípios inerentes às Carreiras Médicas melhorou, significativamente, a actividade assistencial nos hospitais, pois obrigou os médicos à formação contínua para nelas poderem progredir. Foi desta forma que se criou uma elite de especialistas de excelência.

Este documento e a frustrada tentativa de reforma levada a cabo por Gonçalves Ferreira em 1971, acabaram por ajudar António Arnaut a conceber o processo legislativo necessário à edificação do SNS universal e gratuito. Estava-se perante uma viragem histórica na prestação de cuidados de saúde aos portugueses.

Em 1982, este edifício assistencial foi completado com a criação da carreira de Clínica Geral, mais tarde chamada Medicina Geral e Familiar (MGF). Os cuidados primários tinham em vista não só a vertente curativa da medicina, mas também a promoção da saúde.

A partir das duas últimas décadas do séc. XX, a medicina modificou-se muito. Vários factores terão contribuído para essa mudança, o mais importante dos quais foi a explosão das inovadoras técnicas de diagnóstico e de terapêutica, que vieram alterar por completo o exercício da medicina e da vida interna dos hospitais.

A Imunologia, a Biologia Molecular e a Genética também fizeram progressos espectaculares. Entretanto, surgiram novas doenças (SIDA), novos medicamentos (citostáticos, antirretrovirais, terapêuticas biológicas e para a hepatite C), generalizou-se a hemodiálise, os cuidados intensivos, a cardiologia de intervenção, a cirurgia cardíaca, o transplante de órgãos, as próteses, a endoscopia terapêutica e a cirurgia laparoscópia, etc.). Tudo isto contribuiu para um espectacular aumento da esperança de vida, mas criou uma população idosa, carente de cuidados de saúde.

Com todas estas ferramentas nada podia ficar como dantes na actividade clínica e no comportamento dos profissionais. Os médicos adaptaram-se a esta nova realidade e as especialidades utilizadoras dessas tecnologias passaram a ser disputadas pelos mais bem classificados - o domínio de técnicas dá notoriedade e proveitos materiais que não estão ao alcance de quem usa apenas o estetoscópio, como é o caso da Medicina Interna, da Pediatria e da MGF. Estas valências básicas, antes escolhidas pelos melhores, tornaram-se pouco apelativas e assim perderam espaço e importância na avaliação crítica e na racionalização do exercício clínico. O aforismo dum internista expressa bem a situação: o internista compara-se ao queijo: «há serra e tipo serra».

Estas técnicas também tiveram efeitos perversos, como a superespecialização exagerada, que criou peritos de técnicas e não só de áreas do conhecimento, e o afastamento da especialidade-mãe.

A partir daqui passaram a requisitar-se exames em catadupa para esclarecer a patologia, dispensando-se a história clínica. Assim se degradou a relação médico/doente.

Há quem acredite cegamente nas técnicas, mas é necessário ter em conta que são falíveis, dependentes de quem as faz e interpreta e têm de ser equacionadas no contexto clínico. Além disso, algumas são invasivas e podem provocar iatrogenia.

Deparamo-nos frequentemente com achados imagiológicos que nada têm a ver com a doença investigada. O executor não pode deixar de os relatar, mesmo admitindo que são inofensivos. Porém, cria problemas ao clínico que, na dúvida, requisita mais exames para o seu esclarecimento e para o doente que suspeita ter um somatório de doenças complicadas. Este carrossel de investigação tem custos…

Alguns Ministros da Saúde tiveram um papel importante na regulamentação e estruturação do SNS. O sucesso da sua missão também se deve à percepção que tiveram de que os médicos eram absolutamente necessários para construir um SNS de excelência. Por isso, além das inerentes funções de direcção clínica, destinaram-lhe cargos de topo em unidades hospitalares, mesmo sabendo que estas eram cada vez mais difíceis de gerir (Quem, melhor do que eles, conhecia a realidade assistencial?). Não se terão arrependido das opções feitas, porque na grande maioria dos casos o seu desempenho foi notável.

Estas instituições tornaram-se fontes de importantes negócios (equipamentos, medicamentos, informática, obras) e começaram a despertar apetites diversos. Criou-se e sedimentou-se a ideia de que os médicos não eram talhados para a sua gestão, abrindo a porta à entrada de outros actores.

Os administradores hospitalares, contando com fortes apoios na esfera política e partidária, foram ocupando esses lugares, sem que a situação melhorasse. Muitos deles não conhecem as Instituições que dirigem ou a realidade de serviços (urgências, bloco operatório e consulta externa), porque passam a maior parte do tempo nos seus gabinetes a olhar para os computadores, que lhes apresentam números e estatística, mas não a qualidade assistencial.

Se foram escolhidos para endireitar as contas tal objectivo não foi atingido, porque todos os anos derrapam um pouco mais. Aliás, há muito gente idónea a dizer que o problema das Unidades de Saúde é mais a má organização e a deficiente gestão do que a falta de dinheiro.

Em todas as campanhas eleitorais assistimos ao espectáculo dos políticos a prometer um médico de MGF a cada cidadão. Quanto mais pregam, mais a realidade se afasta das promessas. Além disso, são desviados da clínica para tarefas administrativas.

Sem a coordenação dum médico assistente, os doentes percorrem trajectos erráticos (urgências, privados, especialistas diversos) onde são medicados e lhe são pedidos exames, quantas vezes desnecessários. A relação médico/doente degrada-se e a desumanização instala-se.

Os médicos hospitalares passam a maior parte do tempo nos Serviços de Urgência, sem integrarem uma equipa coerente. Acumulam horas de trabalho e ficam imersos entre macas, com doentes graves deitados ao lado de múltiplos casos sociais. Uma verdadeira medicina de guerra! As redes de referenciação e a concentração de certas urgências nunca foram concretizadas.

Como não podia deixar de ser, toda esta irracionalidade leva ao aumento dos tempos de espera para consultas, exames e cirurgias.

Os médicos, desvalorizados, maltratados, esgotados e mal remunerados tentam fugir deste inferno. Uns emigram, outros são cativados por operadores privados.

O que fazem os governantes perante esta realidade? Reagem quando os sinos tocam a rebate e vão aventando algumas soluções caricatas: inflacionar o número de médicos, entregar algumas das suas tarefas a enfermeiros, criar um bacharelato, colocar médicos indiferenciados nos Centros de Saúde e acarinhar as medicinas alternativas. Entretanto, tivemos um Presidente da República que vetou a lei do acto médico. Há quem alimente o sonho de que a inteligência artificial vá substituir o médico no diagnóstico e na terapêutica!

Com a derrocada instalada, precisaríamos de um Marquês de Pombal para empreender a reconstrução. Mas alguém competente aceitará funcionar como «gerente de falências»?

 

Álvaro Carvalho

Especialista de Medicina Interna  

A SINFONIA DO ADEUS

Por: Isabel Almasqué (médica)

Foi com este nome que ficou conhecida a Sinfonia No 45 em fá sustenido que Hayd compôs em 1772 para tenta r convencer o príncipe Nicolas Esterházy, seu patrono, a libertar mais cedo os músicos da orquestra que o acompanhavam durante a sua longa estadia de verão no longínquo palácio Esterháza e que, já cansados e saturados ansiavam regressar a casa, para junto das suas famílias. Haydn teve então a astuciosa ideia de compor uma sinfonia em que os músicos, após tocarem a parte que lhes cabia, iam sucessivamente abandonando o palco. No final, apenas Haydn e o último músico ficavam em cena para tocar a parte final do concerto. O príncipe captou a mensagem e ordenou prontamente o regresso a Viena de toda a orquestra.

Recordei-me desta história a propósito dos últimos acontecimentos que têm marcado a área da saúde em Portugal, com a debandada generalizada dos médicos especialistas dos hospitais públicos. Tal como os músicos de Haydn, anestesistas, obstetras, pediatras, internistas, cirurgiões gerais, ortopedistas, cardiologistas, médicos de família, para não citar outras especialidades, têm vindo sucessivamente a abandonar o Serviço Nacional de Saúde. Mas, ao contrário do príncipe Esterházy, que rapidamente percebeu a situação e tomou a decisão certa para assegurar a fidelidade e a motivação daqueles que estavam ao seu serviço, as nossas autoridades ligadas à saúde continua a querer colmatar os buracos com contratos pontuais e avulsos de tarefeiros e, mais grave, de médicos não qualificados para a função. É como se num concerto os vários naipes da orquestra viessem tocar a horas desencontradas, durante o tempo que tivessem disponível, todos desirmanados e sem maestro para os dirigir. O resultado não seria certamente um concerto musical, mas uma cacofonia digna dum teatro de robertos.

Fui médica dos Hospitais Civis de Lisboa durante 33 anos. Foi lá que fiz toda a minha carreira profissional, aprendi tudo o que sei, ensinei tudo o que sabia, apliquei os meus conhecimentos em benefício dos doentes e fiz grandes amizades. Apesar de todas as insuficiências relacionadas com as condições de trabalho, das múltiplas dificuldades diárias, do peso excessivo do serviço de urgência e dos baixos salários, era lá que gostava de trabalhar e que tencionava ficar até à idade da reforma. Porque abandonei então o SNS onze anos antes do que tinha previsto? Quando iniciei a minha actividade, não existiam contratos individuais de trabalho. Os serviços hospitalares tinham um quadro clínico constituído por chefes de serviço, especialistas e internos da especialidade. Todos funcionavam em equipa, sob a batuta do Director, integrados numa hierarquia de antiguidade e competência aceite por todos e com o mesmo objectivo: tratar os doentes o melhor possível, segundo o estado da arte. Havia tempo para as consultas, para as cirurgias, para aprender e para ensinar; tempo para discutir os casos mais complexos e tomar as decisões terapêuticas mais adequadas; em suma, tempo para pensar. Havia coisas a melhorar? Com certeza, nomeadamente no que diz respeito à organização, à produtividade e à gestão dos recursos, já que os médicos têm fama de ser maus gestores. Mas essas medidas tinham que ser tomadas para servir o sistema e não contra ele. A progressiva transformação dos hospitais públicos em empresas e a aplicação cega do espírito empresarial e dos critérios puramente economicistas ao conjunto das actividades hospitalares, em vez de melhorar o sistema, veio destruí-lo. Com o pretexto da falta de recursos financeiros e o propósito de aumentar a produtividade a qualquer preço, começou-se a poupar nos equipamentos, nos materiais consumíveis, nos tempos de consulta e, por fim, nos recursos humanos. Ao mesmo tempo, exigiu-se maior número de consultas, maior número de cirurgias e mais turnos de urgência. Os médicos foram tendo menos peso na escolha dos equipamentos e dos materiais mais adequados às suas funções. Deixaram de poder controlar a marcação e distribuição de consultas e cirurgias cuja prioridade passou a ser burocrática em vez de clínica. Viram-se assoberbados com um número cada vez maior de doentes pelos quais eram responsáveis, com cada vez menos meios ao seu dispor. A pressão dos números exigidos pelas administrações foram progressivamente atropelando o tempo dedicado à discussão de casos, ao ensino e à aprendizagem. O tempo gasto em absurdas tarefas burocráticas foi aumentando à custa das funções assistenciais. Um clima de stress e de irritabilidade permanentes substituiu um ambiente de colaboração e camaradagem. O dia-a-dia passou a ser uma luta constante contra um sistema hostil à essência da profissão médica e à qualidade dos serviços prestados. A desmotivação foi-se instalando, o “amor à camisola” foi-se perdendo e num contexto de baixos salários, face à existência de outras alternativas, estavam criadas as condições para a debandada geral. Só não viu quem não quis ver. E acabou por se deitar fora o bébé com a água do banho.

A consequente falta progressiva de recursos humanos no sector público abriu caminho quer aos contratos individuais de trabalho quer aos tão falados tarefeiros. Os primeiros previam um determinado número de horas semanais, em horário variável, com ou sem urgência, consoante as necessidades do serviço em causa e as disponibilidades do médico. Embora fosse uma colaboração com alguma regularidade, não pressupunha, nem exigia uma integração plena nas actividades diárias do serviço.

O caso dos tarefeiros foi pior porque a inexistência contratual de qualquer ligação a determinado hospital e a permanente descontinuidade dos serviços prestados favoreceu a desresponsabilização em relação aos doentes, o que é a negação da ética médica.

E é aqui que voltamos à nossa orquestra. Pelos vistos, há ainda quem teime em convencer-nos que, com músicos arrebanhados a esmo, que aparecem quando lhes convém, que nunca se viram nem ensaiaram juntos e não conhecem a partitura, se pode tocar uma “sinfonia do novo mundo”.

Julho 2022

PESTES

 

Passámos mais um Natal confinados! As pessoas continuam receosas, embora se percepcione que casos de doença provocados pelo SARS-CoV-2 são menos graves que no passado. Para aquele estado de espírito contribui bastante o alarido na comunicação social. Nas televisões, os longos períodos informativos massacram-no sem dó nem piedade (António Barreto afirma que ver e ouvir notícias nas televisões é pena capital!), e muitos comentadores de serviço não têm suficientes conhecimentos técnicos que os habilitem a desempenhar tal papel com rigor.

Durante a primeira vaga, cometeram a proeza de arredar dos écrans os enfadonhos analistas do futebol, embora ajudados pela suspensão da prática desportiva. Ainda bem, porque seria explosivo juntar o drama sanitário com a discussão acirrada em torno de penaltis e foras-de-jogo.

Os representantes clubísticos não perderam pela demora e regressaram com outros condimentos: a operação «cartão vermelho», um espelho do que se passa nos subterrâneos do futebol. A estirpe Ómicron, instituída como um fenómeno patológico terrível, acrescentou mais achas para a fogueira.

Como se tudo isto não bastasse, a confusão aumentou com os múltiplos e crispados debates da campanha eleitoral. Em jeito de réplica, são seguidos de análises facciosas por comentadores petulantes que, sem disfarçar o emblema partidário, debitam banalidades incríveis; até têm o desplante de exibir tiques professorais para dar notas às diversas prestações.

 Quem não tiver paciência para entrar neste circo mediático rasca tem de arranjar tarefas alternativas para passar o tempo e evitar a depressão.

O Pai Natal veio em meu socorro. Sendo mais sensato que os figurantes dos media, percebeu que não ia oferecer casacos e gravatas, que não se usam nos tempos que correm, mas sim fatos de treino e livros. Alguém lhe soprou ao ouvido os meus gostos literários, onde a História tem lugar marcado. Entre algumas obras veio uma de William H. McNeill: «Pestes e Povos» (Um relato sobre o impacto das epidemias na ascensão e queda das civilizações).

Li-o de supetão, entusiasmado pela actualidade do tema e pelo seu rigor literário e científico. É brilhante a forma como relaciona a evolução demográfica das múltiplas civilizações e o impacto que tiveram nesse longo processo as pandemias (microparasitismo) e as lutas pelo poder político-militar e económico (macroparasitismo).

Aconselho a sua leitura, sobretudo a quem tem pretensões de esclarecer o público sobre alguns aspectos da pandemia actual; se conjugarem os dados científicos já disponíveis com o conhecimento histórico, estarão em melhores condições de falarem publicamente, sem incorrerem no risco de cometer erros de análise grosseiros, como o de dar excessiva importância patológica à variante Ómicron.

Para esta estirpe também é válido o seguinte princípio geral: à medida que as populações primeiramente atingidas por uma pandemia adquirem imunidade (natural ou artificial), o agente infeccioso começa a perder agressividade, porque os hospedeiros que o alimentam criam-lhe dificuldades de progressão. Nessa altura, saltam rapidamente para organismos virgens, o que aumenta a contagiosidade. Em resumo, estas duas facetas dos germes são inversamente proporcionais.

Neste ciclo evolutivo corre-se sempre o risco dos microorganismos se irem acantonar em agregados populacionais mais pequenos, sem imunidade, criando-lhe boas condições de sobrevivência e dando-lhe a possibilidade de gerar posteriormente perigosas mutantes resistentes. Em qualquer dos casos, se nesta trajectória epidemiológica voltarem ao ponto de partida, só farão estragos significativos muito mais tarde, nas gerações posteriores, que não adquiriram imunidade por falta de contacto com o agressor ou através da vacinação.

Face a esta problemática, seria bom que o esforço de vacinação para o SARS-CoV-2 fosse dirigido aos países pobres, não só para proteger as suas populações, mas também para defender as gerações vindouras dos países que primeiro beneficiaram com a imunização. É outra forma de solidariedade geracional, pois se queremos que os cidadãos em idade activa paguem a reformas dos idosos, será desejável que lhes deixemos como herança um ar mais respirável.

 

Álvaro Carvalho, médico (11-01-2022)

DRAMA SILENCIADO

 Artigo Dr. Alvaro Carvalho

 DRAMA SILENCIADO

O aumento da esperança de vida da nossa população é um grande avanço civilizacional. Todavia, para que os idosos tenham uma qualidade de vida aceitável, torna-se necessário acompanhar de perto os problemas que lhes são inerentes. Por outro lado, é evidente que a falta ou o atraso na sua solução é bastante mais notório no Interior desertificado.

Podemos tomar como exemplo o acesso à saúde. Apesar de, desde a década de 1980, todos os concelhos disporem de Centros de Saúde e de consultas de Medicina Geral e Familiar, falha a resposta em muitas especialidades médicas, porque os hospitais distritais têm carências de profissionais e de equipamento técnico para o fazer em tempo útil.

A Oftalmologia é um paradigma dessa insuficiência. Nos distritos da Guarda e de Castelo Branco, um cidadão espera anos para ter uma consulta no SNS. E mesmo que a ela tenha acesso, tarde e a más horas, quase nunca chega a fazer a cirurgia de que possa necessitar.

A catarata é uma patologia ocular largamente prevalente nesta população envelhecida, mas não só, levando a perda gradual da visão, nalguns casos mesmo à cegueira. Esta situação determina limitações várias, interrupção da actividade profissional de quem ainda tem condições para trabalhar e origina múltiplas intercorrências, algumas delas graves: quedas com traumatismos cranianos, da coluna vertebral e fracturas ósseas, como a do colo do fémur. Mesmo que estes acidentes não sejam fatais acarretam uma via-sacra patológica, com complicações diversas, como escaras, infecções e embolias, que levam à degradação da qualidade de vida. Ora, tudo isto tem custos elevados, porque origina internamentos hospitalares prolongados, cirurgias, reabilitação e consumo de medicamentos.

Numa altura em que os gestores se preocupam mais em contabilizar custos com a saúde das pessoas do que com a qualidade assistencial, nunca vi nenhum estudo a debruçar-se sobre esta realidade. Se tal acontecesse, talvez concluíssem que gastariam menos com as operações às cataratas do que com o tratamento das complicações que delas resultam.

Estas intervenções cirúrgicas são simples de executar, com anestesia local, raras complicações e baixos custos. Mas o mais importante é que restituem a visão, um bem tão precioso. São uma verdadeira dádiva a quem já não tinha esperança de voltar a ver o caminho que percorre, os contornos dos objectos, as letras e cores na televisão.

Em 2016, a Fundação a que presido, vocacionada para ter uma missão no âmbito da saúde no Interior, identificou esta enorme lacuna do SNS. Desde então, empenhou-se em dar um contributo para amenizar este drama assistencial e social. Encontrou disponibilidade de várias Câmaras Municipais para participarem nesta cruzada solidária. De realçar também a colaboração monetária prestada por outras Instituições de Solidariedade Social e pelas Unidades Clínicas, que fazem as operações com rigor técnico e a preços aceitáveis.

Com este programa em marcha, no final deste ano teremos restituído a visão a quatro centenas de pessoas com baixos rendimentos. É um pequeno contributo para resolver tão magno problema. Mas estamos dispostos a prosseguir! Esperamos que este exemplo sirva para pôr em marcha uma imparável corrente solidária, face ao drama que passa despercebido na comunidade.

Nunca esquecerei o abraço apertado que me foi dado por uma senhora, depois de lhe ser restituída a visão. Antes, não via quase nada, tropeçava em tudo o que encontrava pela frente. Certo dia, foi numa vela acesa: provocou um incêndio na sua casa. Felizmente foi socorrida e saiu de lá viva.

Os autarcas têm-me reportado o reconhecimento dos beneficiados com a operação, que voltaram a visualizar o ambiente que os rodeia e o terreno que pisam, que colocaram de lado os óculos e, repetidamente, exclamam: «já não vejo tudo a preto e branco».

A Câmara Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo só agora aderiu a esta campanha. Nunca é tarde para abraçar uma nobre causa. Com base no protocolo assinado já foram beneficiados 14 conterrâneos e até ao fim de Dezembro serão operados mais 10. No próximo ano cá estaremos para continuar a dar visão a mais alguns munícipes.

 

Álvaro Carvalho

(Médico)

A QUEM INTERESSA A TERCEIRA DOSE DA VACINA?  

Para enfrentar a pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 a Medicina apenas dispunha de medidas genéricas – assepsia, isolamento e barreiras físicas. Perante isto, foi posto em marcha um ambicioso programa tendente à procura de antídotos para a combater. Nesta missão empenharam-se inúmeras instituições, com destaque para a indústria farmacêutica.

A investigação científica foi direccionada em dois sentidos: descoberta de medicamentos eficazes para combater o vírus e/ou vacinas para prevenir a doença. Era expectável que aquele objectivo fosse alcançado primeiro, pois a obtenção de vacinas é um processo moroso.

Aconteceu exactamente o oposto: obtiveram-se vacinas rapidamente e os medicamentos curativos tardam a chegar. Acreditei sempre que até ao fim do ano de 2020 íamos ter este bem precioso, porque o investimento nesta cruzada foi enorme. Como se saltaram etapas na investigação podia recear-se que a qualidade não fosse a desejável ou que pudessem originar efeitos secundários de monta. Mas todas revelaram grande eficácia e baixa toxicidade.

Criou-se a ideia de que a infecção pelo coronavírus não conferiria uma imunidade humoral robusta e duradoura (não mais de 4 meses, dizia-se), sem haver dados consistentes que permitissem sustentar esta posição. Estudos credíveis revelaram uma realidade diferente: a maior parte dos infectados mantinha anticorpos ao fim dum ano e só uma baixa percentagem nunca os chegou a ter. Foi consensual a ideia de fazer um reforço da imunidade a todas estas pessoas, porque o estímulo artificial confere maior protecção.

No decurso do processo da vacinação, foi muito ventilada a possibilidade de surgirem mutantes, que pudessem levar à emergência de estirpes mais agressivas. As variantes terão ocorrido em larga escala, mas as cadeias de descendentes tendem a perder agressividade.

Em Portugal, os media fixaram-se muito nalgumas (Reino Unido, Índia e África do Sul), considerando-as mais contagiantes e susceptíveis de originarem doença graves, com mortalidade elevada. Fica a dúvida se esta vaga informativa não estaria a criar condições de inflacionar a administração de vacinas, para rentabilizar o negócio em curso.

Este argumento esgotou-se! Se o objectivo consistia em preparar o terreno para vendas excessivas, surgiu outro pretexto mais apelativo para o fazer: a vacinação conferia uma imunidade humoral pouco duradoura, sobretudo na população idosa, quando já havia estudos que demonstravam o contrário: mais de 90% dos vacinados têm níveis de anticorpos elevados, duradouros e os idosos respondem bastante bem ao estímulo vacinal.

Torna-se evidente que as Farmacêuticas tentam encontrar o mote para rentabilizar o investimento que fizeram. É o lado perverso deste processo, com a prioridade aos negócios a sobrepor-se à defesa da saúde pública. Seria de esperar que esta guerra se tornasse mais agressiva, quando aparecessem no mercado players a apresentar medicamentos curativos e profilácticos da Covid-19.

A OMS começou por desaconselhar a terceira dose de vacina. Mas, nos últimos dias começou a ceder um pouco, admitindo-a em pessoas imunocomprometidas.

Por cá, tivemos médicos com cargos institucionais a defender a terceira administração, sem apresentarem argumentos científicos válidos. Alguns têm ligações aos Laboratórios produtores de vacinas (o conflito de interesses foi acautelado?).

 A comunicação social insiste em criar um ambiente propício ao consumismo, noticiando casos de reinfecções em vacinados, sem sublinharem que, nestas situações, a doença é menos grave; salientam ainda que as mortes acontecem em pessoas com idade superior a 80 anos, como se isso não fosse previsível.

Curiosamente, os utentes dos Lares, tão esquecidos na primeira vaga da pandemia, são agora instituídos como alvo prioritário para o reforço. É uma compensação tardia ou será porque estes idosos fragilizados não questionarão a medida? O povo diz que «quando a esmola é grande o pobre desconfia…».

O coordenador da Task Force manifestou-se contra o reforço vacinal. Coincidência ou não, o Organismo que tutelava foi extinto e o tão competente vice-almirante, louvado e elogiado por todos, saiu de cena pela porta das traseiras.  Até parecia uma vingança do político incompetente e verborreico que substituiu.

Numa trapalhada política de baixo nível, Primeiro Ministro e Ministro da Defesa ficaram mal na fotografia. O Presidente da República terá acordado tarde e tentou suster os estragos.

Vale a pena ler a crónica de José António Saraiva no Nascer do Sol do último sábado: «Uma história mal contada». Segundo ele, Gouveia e Melo cessou as funções de coordenador da Task Force por se manifestar contra a administração da terceira dose de vacina. Porém, como não podia ser deixado à solta, correndo-se o risco de fazer revelações incómodas, davam-lhe o cargo de Chefe de Estado Maior da Armada, escorraçando o actual detentor do título, reconduzido há pouco.

Marques Mendes, um hábil frequentador dos bastidores políticos, referiu-se ao assunto na sua prédica de domingo: «a terceira dose de vacina é inevitável, porque há grandes pressões da Indústria Farmacêutica». Saberá muito mais sobre esta matéria, mas passou por ela como gato sobre brasas.

Não me custa admitir que venha a haver argumentos científicos para aconselhar reforços vacinais. Poderão ter de actualizar-se as existentes para enfrentar eventuais mutações do vírus, à semelhança do que se faz com o da gripe sazonal. Mas isto tem de ser ditado pela ciência e não por pressões ilegítimas.

Espera-se que o plano da vacinação, que tão bem correu até agora, não caia num pântano. Se isto acontecer damos argumentos aos negacionistas, que se remeteram ao silêncio perante a evidência científica, quem sabe se à espera de melhor oportunidade para ressurgirem.

 

Álvaro Carvalho, médico

Coordenador de estudos serológicos da OM

(12/10/2021)      

Entrevista do Dr. Álvaro Carvalho ao CM, aquando do lançamento do livro "Nas margens da Medicina"

A saúde  não deve ser gerida ao ritmo  dos ciclos políticos

 Álvaro Carvalho  lança dia 31 um novo livro, “Nas margens da Medicina”, pretendendo com ele passar algumas mensagens, como a de realçar a importância que tem a humanização do acto médico. Algo que alega ir-se perdendo num Serviço Nacional de Saúde em declínio.