Ecos da Capital, por Dr. José Marques Vidal
“Estamos todos aqui por uma questão de amizade” - disse o Dr. Álvaro Beleza no enaltecimento das qualidades humanas, profissionais, sociais e culturais do Dr. Álvaro de Carvalho, na apresentação do seu último livro, “Vidas Cruzadas”, no Auditório do Centro Paroquial do Estoril, perante uma vasta assistência constituída por gente de todos os estratos sociais.
Com efeito, a amizade sobrepunha-se a todo outro sentimento presente, respirava-se em auditório cheio e interessado.
Mas pergunta quem bem o conhece: O Dr. Álvaro Carvalho poderá ter pessoas que não sejam suas amigas, quaisquer que tenham sido as circunstâncias em que com ele lidaram?
Como estudante, funcionário público, médico, no internato, na prática clínica, na direcção de serviços médicos, na administração e gestão de Hospitais, pautou a sua conduta por critérios de irrepreensível integridade de carácter e sentimentos de fraterno humanismo. O tempo que tanto falta a muitos, sempre apressados para tudo, sobrava para Álvaro Carvalho ouvir e cuidar dos seus doentes, gerir e administrar instituições públicas e estar disponível para os muitos amigos que o requisitavam. Cessada a actividade médica oficial, cresceu-lhe o tempo para a actividade humanitária e a autoria literária. E aí o temos a criar a Fundação a congregar médicos e presidentes das câmaras beirãs no combate à cegueira provocada por cataratas, com operações a custo zero, e a desunhar-se em verdadeiros êxitos literários que sucessivamente foi publicando.
Como o conheci? Já lá vão perto de 40 anos. Caçava-se em Andaluzia em Outono de sol rútilo e quente, estava Álvaro na sua pujança profissional. Dados meia dúzia de tiros, vejo-o espipar-se e dirigir-se ao monte, onde o velho Florindo, de Assafora, se afadigava a preparar o almoço para cerca de trinta bicos, panelas ao lume e lâmina de naifa na mão para descasque das batatas. Depois de despir a bata de médico, para envergar o camuflado de caçador, envergara então o avental de cozinheiro e, em amena conversa, ajudava o Florindo na arte de bem cozinhar. Nesse mesmo momento descobri Álvaro de Carvalho: um Homem simples e fraterno. E a simplicidade anda de mãos dadas com a grandeza de alma.
José Marques Vidal, 2023/10/22
HUMILHAÇÃO EM DIRECTO
Os “comentadeiros” políticos e do futebol, cada qual na estrita defesa do seu clube, esgotaram a minha paciência para assistir a programas televisivos. Contudo, em momentos de tédio, sou tentado a ter uma ideia geral da actualidade noticiosa. Num desses instantes, deparei-me com uma dita Comissão de Inquérito da Assembleia da República ao “Caso das gémeas”, interrogando uma mãe indefesa, em termos inconcebíveis. A minha primeira reacção foi desligar o televisor, mas fui masoquista e acabei por assistir àquele espectáculo indecoroso, para ver até onde chegava o despudor e a falta de humanidade e de compaixão daqueles deputados.
Qual era o crime cometido pela senhora para ser tratada daquela forma ignóbil: ter tentado remover obstáculos para poder aceder ao tratamento de duas filhas gémeas que nasceram com uma grave deficiência genética. Na mente dos indomáveis interrogadores o libelo acusador era agravado por a senhora viver no Brasil, embora fosse neta e filha de portugueses e ter dupla nacionalidade. Entretanto, as crianças também tinham adquirido a nacionalidade portuguesa, antes de terem o diagnóstico da doença.
Acrescia a tudo isto o facto de haver suspeitas de ter recorrido a “cunhas”, ao mais alto nível, para ter acesso num hospital público a um medicamento inovador, dispendioso, mas susceptível de melhorar a situação clínica das filhas.
Pelo que foi dado perceber ninguém foi ultrapassado, porque não havia qualquer outra criança a aguardar essa terapêutica.
A “cunha” em Portugal é quase uma instituição, mas isto acontece porque os serviços públicos não respondem com a rapidez necessária para resolver muitos problemas, mesmo quando têm manifesta gravidade. E se está em jogo a saúde de pessoas, sobretudo com patologias graves, é lícito que se lance mão dos meios técnicos disponíveis para tratar os nossos doentes. E quando se trata de crianças como estas, para quem a genética foi tão cruel, só temos de louvar a luta e a persistência desta mãe para conseguir obter medicamentos inovadores capazes de melhorar a saúde das filhas.
Se os interrogatórios foram genericamente chocantes, a interpelação de um deputado ultrapassou todos os limites: perguntou à senhora como estavam as filhas! Talvez pretendesse obter a resposta de que tinham piorado, para poder inferir que não tinha valido a pena o seu esforço, muito menos o volume da despesa. Como seria de esperar, da face abatida da interrogada escorreram lágrimas e não palavras!
Já agora interrogo-me: estes deputados da Nação nunca meteram “cunhas” quando a doença lhes bate à sua porta ou à de familiares e amigos? Se a resposta é negativa, terei de lhes dizer que são a excepção e não a regra, porque durante a minha longa carreira profissional, e ainda hoje, inúmeros políticos, deputados e governantes me solicitam ajuda em contextos de situações clínicas mais ou menos graves. Nunca deixei de os atender, tal como faço com qualquer cidadão anónimo que implore os meus préstimos, sem deixar de respeitar os princípios éticos e deontológicos inerentes à profissão.
A partir de agora fico a saber que por esta minha faceta profissional corro o risco de vir a ser incomodados por estes “vigilantes” a quem o povo, infelizmente, conferiu o seu voto. Mas não me amedronta a possibilidade de um dia ser constituído arguido por essa minha atitude solidária. Cá estarei para me defender!
A última palavra é para a jornalista que descobriu este furo mediático que abriu telejornais e se arrastará durante meses na comunicação social. Tudo parece indicar que o freelancer contratado que teve acesso à casa da senhora o fez de forma sub-reptícia, insinuando que estava ali para ajudar duas crianças fragilizadas, quando afinal o que estava em jogo era obter uma caixa jornalística de muito mau gosto.
Álvaro Carvalho
Médico especialista em Medicina Interna. Ex-gestor do HGO
26-06-2024 Jornal Sol Online